Artigo - A Divergência da Instituição, Liderança e Cultura
07/12/2022

A Divergência da Instituição, Liderança e Cultura

O bem-estar mental dos homens e mulheres que se destinam a “servir e proteger” a sociedade em todo o mundo é tão importante quanto sua saúde física e segurança. Se problemas de saúde mental não resolvidos, afetam os cidadãos comuns, por que não podem afetar os policiais e servidores que se dedicam à Segurança Pública?

Os trabalhadores da segurança pública são regularmente expostos a coisas terríveis que a maioria da sociedade tem a sorte de não testemunhar ou vivenciar. Como resultado, muitos sofrerão um dano mental – e muitos farão isso em silêncio.


Entendendo o quadro geral

Uma instituição policial experiente sabe: muitas vezes, o público percebe a polícia como algo diferente de humanos, que deve aceitar e tolerar coisas muito além de qualquer outra pessoa na sociedade. À polícia, dá-se a aparência de ser inquebrável, de ser uma rocha para todos, a ponto de se esquecer de cuidar de si mesma.

Que outra profissão exige que se lide com o pior da natureza humana? Que outro trabalho requer que um indivíduo esteja em um estado constante de hipervigilância e alerta, mas ao mesmo tempo sendo um conselheiro, um assistente social, um médico, um psicólogo e um juiz?

Que outra profissão autoriza alguém a tirar a liberdade de outra pessoa ou, na pior das hipóteses, a executar força letal em outro ser humano e ainda o obriga a prestar assistência à pessoa que acabou de tentar feri-la ou matá-la?

Que trabalho faz as pessoas se perguntarem se voltarão para casa para seus entes queridos no final de cada dia, de cada plantão? 

Desde o momento em que entramos em um Curso de Formação Policial – e aqui faço esse parêntese sem desmerecer nossos servidores administrativos que, sequer um curso de básico de formação sobre o que é uma instituição policial e como ela funciona lhes é ofertado, porém lhes entregam uma carteira e um crachá com os brasões e logomarcas da polícia, colocando-os em risco para uma sociedade que não sabe identificar um policial de um servidor administrativo portando sua funcional ou crachá -  aprendemos legislação aplicada à atividade policial, procedimentos internos, protocolos, exercícios, autodefesa física e direção tática policial. 

Somos preparados e treinados para usar bastões, espargidores, algemas e ensinados quando e como usar a força letal. Somos levados ao pico da aptidão física, adestrados sobre como manter a neutralidade com nossas emoções e ensinados a permanecer compostos e calmos em situações em que os outros não o fariam.

Porém, o que muitos novos policiais não são educados é como cuidar de sua saúde mental e o impacto substancial que isso pode ter sobre eles, suas carreiras e suas famílias.

E por que eu trago isso à tona neste informativo? Porque no último 27 de novembro, fez-se três anos que mais um colega tirou a própria vida como solução para seus sofrimentos que tiravam seu bem-estar mental. Naquela quarta-feira, ao ver meu colega de profissão e amigo Borba (Lourival da Cunha Borba) no chão, já sem vida, eu, que passava por um tratamento para depressão - e não minto quando digo que o ato de dar fim a própria vida é um pensamento que povoa nossa mente quando nos encontramos perdidos na turbulência da falta de estabilidade de nosso bem-estar mental – resolvi lutar e me erguer, fazendo de tudo para voltar ao equilíbrio.

É alarmante taxa de escalada de mortes por suicídio entre aqueles que exercem a profissão. Mesmo com programas e estratégias de intervenção que buscam enfocar o aspecto do espectro da saúde mental em policiais que já sofreram uma lesão e requerem intervenção e tratamentos.

No entanto, as perguntas ainda permanecem. Por que os policiais continuam tendo altos índices de doenças mentais e suicídio? Por que o estigma de vivenciar um problema de saúde mental ainda permeia fortemente as instituições policiais? Por que os policiais continuam relutantes em se apresentar e buscar ajuda?

As respostas podem estar em questões mais amplas que afetam externamente a polícia, fora da influência da exposição ao trauma. Um exemplo é a campanha midiática que, a todo custo, tenta denegrir a imagem da instituição PRF em detrimentos de divergências político-partidárias envolvendo lideranças.

Por exemplo, como policial, há uma sensação terrível de “perder o controle” por precisar pedir a outra pessoa para ajudar a resolver o problema, especialmente porque os policiais são vistos pela comunidade como estóicos, fortes, imperturbáveis e inabaláveis.

Uma combinação de estressores externos da vida, pressões organizacionais, práticas de liderança disfuncionais e impedimentos culturais acumulam tensão, agravamento e frustração.

Quando essas questões se cruzam com a exposição ao trauma, o efeito sobre o indivíduo pode ser substancial a ponto de permear o bem-estar funcional, a organização e os entes queridos do operador de segurança pública.

Os transtornos mentais em todo o mundo estão aumentando e custarão à economia global aproximadamente US$ 16 trilhões (USD) até 2030. Estima-se que 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos todos os anos devido a problemas psicológicos.

Um estudo de 2018 da Universidade de Cambridge sobre a polícia no Reino Unido revelou que dois terços de todos os entrevistados disseram ter um problema de saúde mental diretamente resultante do trabalho policial. Mesmo assim, quase todos os entrevistados - cerca de 93% - disseram que trabalhariam normalmente se sofressem de problemas psicológicos, como estresse ou depressão. Eles fariam isso sem procurar tratamento devido ao estresse organizacional negativo e aos impactos associados.

Problemas de saúde mental provocam “déficits de desempenho em tarefas cognitivas complexas em policiais”, que podem incluir tarefas que exijam avaliação de riscos, planejamento de respostas em várias etapas para uma emergência ou a execução de operações complexas onde há vários infratores e ou vítimas. Caso essas questões de saúde mental não forem adequadamente tratadas, o risco para a sociedade é alto. 


A cultura policial e o papel da liderança na manutenção da saúde mental de seus subordinados

Poucos policiais têm dificuldade em pedir para ir para casa devido a uma enxaqueca ou gripe.

Mas, quando se trata de falar sobre ter um problema de saúde mental, os operadores de segurança pública hesitam em abordar o assunto com familiares, amigos, colegas e, sobretudo, com suas chefias imediatas.

É amplamente percebido na cultura de uma instituição policial que reconhecer um dano à saúde mental é um sinal de fraqueza ou um assassino da carreira e coloca os indivíduos em um grupo estereotipado que, consequentemente, leva à discriminação, isolamento e alienação.

Com medo de serem percebidos como fracos e indignos de confiança, de sofrer sanções potenciais ou de perda de oportunidades profissionais, os membros do órgão policial dificilmente estenderão a mão e buscarão ajuda, mesmo em particular.

A cultura policial é um microcosmo difundido no qual uma mini sociedade fechada perpetua um senso de forte coesão, um código de comportamento e dependência mútua para a sobrevivência. Ele contém uma série de suposições, crenças, expectativas e filosofias que governam as interações, o desempenho e as funções da profissão. Informa a polícia sobre como realizar suas tarefas, quão duro trabalhar, que tipos de relacionamento ter com seus colegas policiais e outras categorias de pessoas com as quais eles interagem e como eles deveriam se sentir em relação aos executivos da polícia, juízes, leis e os requisitos e restrições que eles representam. Mais significativamente, a cultura de policiamento tradicional valoriza a força, o destemor, a integridade, o estoicismo, a desconfiança, a autoconfiança e os comportamentos e emoções controlados.

Sendo que a liderança é um elemento central da instituição policial em todos os níveis, as chefias têm a responsabilidade moral de garantir a saúde e a segurança de seus subordinados e a responsabilidade legal de fazê-lo de acordo com os regulamentos de saúde e segurança ocupacional.

As chefias desempenham um papel fundamental no apoio à saúde mental daqueles que supervisionam e estão bem posicionadas para identificar os primeiros sinais e sintomas de um trabalhador que pode estar lutando com sua saúde mental e para facilitar a melhoria e a recuperação.

Independentemente de cargo ou função, os estressores internos e externos podem ser tão prejudiciais aos integrantes de uma instituição policial quanto experiências traumáticas como por exemplo:

  • Estressores internos: supervisão e liderança deficientes, falta de oportunidades de desenvolvimento de carreira, sistema de recompensa inadequado, políticas desagradáveis, requisitos de relatórios excessivos, montanhas de papeladas e restrições orçamentárias.

  • Fatores estressantes de desempenho: ambiguidade e conflito de papéis, horários adversos de trabalho e escala de serviço, medo e perigo inerentes, sensação de inutilidade.

  • Fatores estressantes organizacionais: filosofia administrativa, mudança de políticas e procedimentos, moral, satisfação no trabalho e medidas de desempenho mal direcionadas.

  • Estressores pessoais: estressores da vida doméstica, incluindo questões pessoais, questões conjugais, doenças, problemas com filhos e pais idosos, angústia conjugal e restrições financeiras.

  • Estressores fisiológicos: fadiga, condições médicas, problemas de saúde comórbidos, privação de sono, nutrição deficiente.

  • Estressores psicológicos: todos os anteriores e a exposição a situações traumáticas.

A liderança desempenha um papel incondicional e fundamental na criação de um ambiente que promova o bem-estar mental e emocional e em torná-lo seguro para discutir e buscar ajuda no local de trabalho. 

As chefias estão na melhor posição para identificar problemas de saúde mental nos trabalhadores e para respondê-los de maneira apropriada e significativa.

Para gerar confiança e segurança em sua equipe é importante que as chefias possuam uma compreensão básica a respeito de saúde mental, sintomas e comportamentos que podem identificar potenciais lesões mentais que permitam que estratégias de intervenção precoce sejam implantadas, assim como seriam para uma lesão física.

A polícia ainda é incipiente na formação de lideranças, principalmente em disciplinas que preparem as chefias para saber como agir quando um membro da equipe confidencia a elas que está lutando contra a depressão, ansiedade, ideação suicida ou lesão por estresse operacional.

Para um líder que busca gerar compreensão e apoio para o bem-estar na atividade de membros de uma corporação policial, a autenticidade é o maior bem.

Se as chefias da polícia puderem reconhecer os sinais e sintomas; discutir saúde mental abertamente, sem preconceitos; conhecer os recursos disponíveis para os subordinados, dentro e fora do local de trabalho; e apoiar e orientar as pessoas com problemas psicológicos em suas jornadas de recuperação, elas podem estabelecer confiança, reduzir o estigma e normalizar a compreensão da saúde mental no local de trabalho.


Conclusão

Somos cientes de que os problemas de bem-estar mental são difíceis de resolver; esses são problemas com os quais as instituições policiais não souberam lidar bem no passado. A responsabilidade e o risco para as organizações são problemáticos, o que promove uma resposta adversa ao risco ao lidar com alegações de saúde mental. Além disso, o tópico possui muitas áreas cinzentas e as decisões sobre como lidar com questões de bem-estar mental podem ser altamente subjetivas.

Reconhecer, normalizar e aceitar que os danos psicológicos, assim como os danos físicos, constituem um elemento integrante e esperado do policiamento, ajudará e incentivará os membros a se apresentarem, caso sofram qualquer forma de dano psicológico.

Abordar a cultura e liderança policial e incorporar políticas, estruturas e processos aos pilares institucionais ajudará a superar os principais impedimentos existentes para melhorar a saúde mental e o bem-estar nas diversas esferas de operação da segurança pública.

Inculcar o diálogo de saúde mental no policiamento em todas as facetas do ecossistema policial, terminologia e jargão, liderança, treinamento e cultura terá um efeito positivo em alcançar a confiança estrutural e superar o ceticismo individual.

A introdução abertamente de mudanças construtivas dentro das organizações enfatizará aos funcionários que as chefias são sérias e comprometidas em garantir a saúde psicológica e o bem-estar de seu povo e que isso é de suma importância.

Ao fazer isso, os órgãos policiais encontrarão maior produtividade, níveis mais baixos de absenteísmo, fatores de risco reduzidos para doenças e enfermidades, melhor qualidade de vida e sensação de bem-estar, maior recrutamento e retenção de pessoal, melhor desempenho cognitivo e redução do estresse.

Tal abordagem incentiva e apoia relacionamentos mais fortes entre os pares, sendo chefias ou não e, o mais importante, salvará relacionamentos e vidas.


Marcelo R P WINTER
Policial Rodoviário Federal
Diretor de Comunicação SINPRF/SC

_____________________

1- Anthony D. LaMontagne et al., “Workplace Mental Health: Developing an Integrated Intervention Approach,” BMC Psychiatry 14 (2014), artigo 131.
2- Cheryl Regehr e Vicki R. LeBlanc, “PTSD, Estresse Agudo, Desempenho e Tomada de Decisão em Trabalhadores de Serviços de Emergência,” Journal of the American Academy of Psychiatry and the Law 45, no. 2(junho de 2017): 184–192.